Nas entrelinhas da SAF

Nas entrelinhas da SAF 

by Rômulo José Martins Júnior

Se hoje tem um assunto que é comentado em todas as rodas de amigos, mesas de escritórios e debates entre especialistas, este assunto é a SAF – Sociedade Anônima do Futebol.

Mas com alguns meses de vigência e dois grandes clubes já transformados em SAF, quais as percepções iniciais deste modelo que podemos inferir, que não está na literalidade da lei e os noticiários não lhe informam?

Inicialmente, é de suma importância pontuarmos que o modelo da SAF não pode ser comparado com as antigas tentativas de transformar as associações desportivas em Clube-Empresas, dado que hoje temos uma lei específica que trata sobre o tema, delimitando procedimentos, formas e responsabilidades, seja da SAF, seja do clube originário (a associação desportiva, em regra), seja dos administradores da SAF e demais envolvidos.

Ainda assim, as recentes criações da SAF Cruzeiro e SAF Botafogo, nos possibilitou entender um pouco mais sobre como este modelo funciona, e compartilhamos alguns pontos:

Sob o ponto de vista de gestão e governança, nitidamente existe um choque de gestão quando observamos o que vem sendo feito nas SAFs supramencionadas. Por exemplo, mesmo sabendo que a SAF Cruzeiro teve seu contrato de investimentos assinado, mas que ainda está em fase de verificação de condições precedentes para que se materialize, efetivamente, a aquisição do clube pelo Ronaldo, a SAF já vem mostrando regras de gestão que normalmente não se aplicavam às associações desportivas.

Um bom exemplo disso seria o caso do Goleiro Fábio. Ídolo do Cruzeiro teve o seu contrato rescindido após não aceitar a proposta de renovação pela SAF. Mas por qual motivo este caso seria um bom exemplo?

A Lei 14.193/2021 (Lei da SAF) em seus artigos 2º, §2º e 9º, delimitou muito bem a responsabilidade em relação a passivos da associação desportiva, sendo a SAF responsável pelos passivos advindos das obrigações que lhes forem transferidas. No caso do do goleiro Fábio, por exemplo, ocorrendo a renovação do contrato com o jogador, todas as obrigações anteriores a constituição da SAF Cruzeiro seriam automaticamente transferidas para a SAF.

Ou seja, avaliando o risco de materialização deste potencial passivo, a sua assunção poderia não fazer sentido para a sociedade constituída. Neste caso específico, vale dizer que a nossa análise é puramente legal, sem adentrar no mérito das negociações entre SAF e jogador.

A decisão gerencial relatada acima mostra, claramente, que a criação da SAF traz algo que antes era pouco visto pela maioria dos clubes de futebol, que é a gestão estratégica e plano gerencial de contingências.

Ou seja, antes de se tomar qualquer decisão, deve ser avaliado o plano de negócios e a capacidade financeira da SAF para assunção das mencionadas obrigações. Lado outro, este choque de gestão vem criando uma “barreira” nos conselhos responsáveis por analisar e recomendar a constituição da SAF, tornando mais complexo e moroso o movimento.

Este pequeno exemplo mostra alguns dos desafios da SAF, que como toda sociedade empresária, visa lucro e, para tal, deve observar mecanismos de gestão que o possibilitem.

Mas algo deve ser pontuado. Aquele medo inicial e comum das torcidas sobre mudança de cor do clube, mudança de escudo, hino, dentre outros pontos, não aconteceu. E isso não aconteceu, pois, a Lei da SAF trava alterações como esta, justamente para preservar a essência e a história da associação desportiva, possibilitando que a sociedade alavanque a marca, mas sem mudar a construção histórica daquele clube.

Outro ponto interessante, que tem gerado debates e certamente será objeto de análise mais aprofundada pela doutrina e pelos Tribunais, diz respeito à possibilidade de se aplicar dispositivos previstos na Lei nº 14.193/21 a clubes de futebol que ainda não formalizaram a constituição da SAF.

Como se sabe, o requerimento de submissão ao concurso de credores por meio do Regime Centralizado de Execuções, que consiste na concentração no juízo centralizador as execuções, as receitas do Clube e os valores arrecadados, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada, deve ser apresentado perante o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, quanto às dívidas trabalhistas, e perante o Presidente do Tribunal de Justiça, quanto às dívidas de natureza civil (vide art. 14, §2º).

Até o presente momento, os Presidentes dos Tribunais de Justiça que já apreciaram tais requerimentos apresentados por Clubes de Futebol, notadamente os Presidentes do TJMG, TJRJ e TJSP, deferiram a concessão do RCE em favor dos Clubes (a título de exemplo, Botafogo, Vasco da Gama, Cruzeiro e Portuguesa), apesar de ainda não ter havido, na ocasião dos respectivos requerimentos, a constituição definitiva da SAF.

O entendimento que tem prevalecido até o presente momento é no sentido de que Lei nº 14.193/21 refere-se a “clube ou pessoa jurídica original e a Sociedade Anônima do Futebol” (artigo 2º, §2º, inciso II), razão pela qual todas essas entidades estariam albergadas pela referida norma legal.

Por outro lado, há quem defenda que os benefícios da Lei nº 14.193/21, pela análise da exposição de motivos do então Projeto de Lei, estariam diretamente vinculados a transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF, sobretudo porque essa última figura como garantidora dos credores, caso o clube não consiga pagar as dívidas no período de 10 (dez) anos.

Por mais que essa questão seja intrincada, fato é que os Clubes estão se beneficiando das novas regras instituídas pela Lei nº 14.193/21, notadamente da possibilidade de centralização das execuções, independentemente da constituição definitiva da sua SAF, medida que tem se mostrado um importante instrumento de reestruturação das entidades desportivas.

Já sob a ótica trabalhista, matérias como sucessão de empregadores, recuperação judicial e execução coletiva terão relevante repercussão nesta nova realidade societária, o que deverá ser observado na medida em que as SAFs sejam incluídas no polo passivo de ações trabalhistas relacionadas as associações desportivas que deram origem à SAFs em questão.

Nesta linha, o Poder Judiciário Trabalhista e Ministério Público do Trabalho, mediante atuação ou declaração isolada de seus integrantes, já apresentaram críticas sobre a forma pela qual a legislação tratou o pagamento de credores e às regras da sucessão trabalhista, sendo que a evolução destes entendimentos, principalmente nas decisões judiciais a serem proferidas em discussões que envolvam o tema, deverão ser acompanhadas de perto pelos interessados, objetivando uma possível discussão de quebra da segurança jurídica a depender da forma como os magistrados passarão a interpretar cada caso.

Portanto, a existência de repercussões além daquelas previstas na Lei nº 14.193/21 é algo que fará parte do nosso cotidiano neste início de vigência da lei, sejam relacionadas a matérias jurídicas propriamente ditas, ou sobre o impacto no futebol e na gestão das SAFs, o que poderá ser questionado, apenas, com a evolução dos casos.

 

Conteúdo elaborado pelos profissionais da equipe responsável pelos projetos de SAF da Lacerda Diniz Sena.

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